segunda-feira, 25 de julho de 2016

Josué Guimarães – é possível que tenha sido um agente da KGB?

original:
http://stb.cepol24.pl/josue-guimaraes-e-possivel-que-tenha-sido-um-agente-da-kgb


No Brasil foi comentado o caso do escritor brasileiro Josué Guimarães (1921 – 1986),  que viveu em Portugal durante um certo tempo e sobre o qual foi escrito, em base ao Arquivo Mitrokhin, que colaborou com a KGB e que foi um agente deste serviço de inteligência soviético. No jornal brasileiro “Zero Hora”, publicado em Porto Alegre,  pessoas que conheceram o escritor comentaram sobre o caso, afirmando que ele não seria competente para cumprir um papel como este, pois era uma pessoa de convicções não comunistas, aberta e que falava demais. Afirmaram que alguém assim, simplesmente não servia para ser um agente da KGB. Todos aqueles que o conheceram ou que com base em suas experiências tinham algo a dizer a respeito, estão simplesmente convencidos de que a informação do semanário português “Expresso” (março 2016), que foi o primeiro a mencionar o caso do escritor Josué Guimarães, não passa de um sensacionalismo barato que não possui nenhuma cobertura de fatos.


Não conhecemos o conteúdo (não publicado) do Arquivo Mitrokhin que se encontra na Universidade de Cambridge; também não temos acesso às pastas da KGB em Moscou. Por isso, não podemos afirmar nada em concreto sobre a eventual colaboração deste escritor brasileiro com a KGB, nem excluir esta colaboração.  Neste texto, vamos tentar esclarecer por que não é possível excluir a possibilidade de colaboração.

Conhecendo um pouco sobre a prática do serviço de inteligência comunista tchecoslovaco da StB, podemos ter uma idéia sobre o trabalho da KGB soviética. O motivo é simples – o serviço de inteligência tchecoslovaco não somente recebia recomendações e ordens do serviço de inteligência soviético, como também seguia o seu exemplo, ou seja, atuava através dos mesmos princípios durante o trabalho, realizava as suas atividades operacionais no território de países estrangeiros e escolhia os seus colaboradores, trabalhando depois com os mesmos, de um modo idêntico ou semelhante. Conhecendo a maneira de agir da StB, podemos com certeza afirmar que o método de trabalho da KGB soviética não é totalmente desconhecido para nós. Sendo assim, podemos afirmar sem nenhum risco de erro, que os espiões de Moscou que trabalhavam em países estrangeiros também seguiam um padrão semelhante de trabalho.

Em primeiro lugar – as anotações por escrito que Vasili Mitrokhin fazia quando trabalhava para a KGB são somente provas indiretas. Não são fotocópias de documentos, mas “somente” frases e observações escritas, com base nos documentos originais que são e, certamente serão ainda por muito tempo, secretos. Com base em nossa experiência, podemos afirmar que as informações escritas por V. Mitrokhin não foram inventadas, mas sim apresentam o conteúdo dos documentos internos originais da KGB. Isso está bem demonstrado, por exemplo, no caso descrito por nós sobre o ilegal soviético que residiu durante os anos 50 no Brasil, Mikhail Ivanovich Filonienko. A veracidade das informações fornecidas por Mitrokhin, publicadas anteriormente no Ocidente, é confirmada pelo atual serviço de inteligência russo SVR, que nas suas páginas de internet descreve a história deste agente ilegal soviético. Existem inclusive alguns detalhes do livro do antigo arquivista da KGB, que não foram fornecidos pelos russos em suas páginas, mas foram confirmadas por nós. Desta maneira, é possível afirmar que a fonte “Mitrokhin” é duplamente confirmada. Logicamente, isso não permite que ninguém afirme que, tudo que se encontra no arquivo de Cambridge seja cem por cento verdadeiro. Mas muitos outros casos, não somente o de Filonienko, fazem com que essa fonte seja tratada como séria e bastante confiável e, o seu questionamento, deve ser feito de uma maneira complexa, ou seja, não somente através de impressões e observações gerais, mas também com provas concretas nas mãos. O mesmo vale, é claro, quanto a aprovação desta fonte como sendo totalmente confiável: sem a apresentação de outras fontes e provas o caso não poderá ser totalmente comprovado.

Sendo assim, resulta que não estamos em condições (por enquanto), de responder de um modo convincente à pergunta, se o escritor Josué Guimarães realmente foi um colaborador da KGB. Mas, como já esclarecemos, também não podemos excluir esta possibilidade. Nós tratamos o “Arquivo de Mitrokhin” como uma fonte confiável, mas também estamos cientes de que são “somente” anotações por escrito. Anotações que, em face da falta de acesso às pastas de Moscou, possuem um enorme valor.

Argumentos.

O escritor recebeu o codinome  “Gosha” (Gocha). Este fato somente não é suficiente para sinalizar que fosse um agente da KGB. Codinomes eram dados tanto para agentes e informantes, assim como para pessoas observadas e “trabalhadas” (processo de reconhecimento, monitoração e/ou abordagem operacional com determinado objetivo). O fato de receber um codinome comprova somente uma coisa – esta pessoa, por algum motivo, era um objeto de interesse por parte do serviço de inteligência soviético. Podia estar sendo monitorado como um inimigo, como alguém perigoso para a URSS (possibilidade que neste caso podemos excluir) ou como um potencial (inclusive inexperiente) informante e até colaborador. Um “trabalho” como este, geralmente durava aproximadamente um ano, às vezes mais, às vezes menos, e conduzia – após a finalização do reconhecimento sobre o “figurante trabalhado” – a um estágio seguinte, segundo a utilidade de determinada pessoa, de sua motivação para uma colaboração, ou de acordo com o plano operacional do oficial condutor.  Isso significa que,  dependendo do resultado do “trabalho”, esses encontros, ou continuavam a serem realizados ou eram interrompidos. Então, poderia tornar-se um contato de cobertura, ou seja, uma pessoa com a qual o “diplomata” se encontrava de uma forma totalmente legal. Poderia também tornar-se um informante consciente ou inconsciente, com o qual o oficial da KGB se encontrava conspirativamente, assim como poderia tornar-se inclusive um agente ou um contato secreto (um tipo de agente que colaborava com a KGB sem remuneração, mas como um agente de valor completo que fornecia informações e/ou executava operações ativas sob ordens de seu oficial condutor). Aqueles que negam as afirmações do “Expresso” de que Josué foi um agente da KGB, não excluem a possibilidade de que ele realmente poderia ter se encontrado com diplomatas soviéticos.  Foram 38 encontros em Lisboa, 2 em Buenos Aires e 2 no Rio de janeiro. Falta uma informação importante – qual foi o período em que ocorreram estes encontros? Somente no ano mencionado de 1976? Ou também durante um período maior de tempo? A quantidade de encontros leva à conclusão de que ocorreram durante um período mais longo de tempo, já que no âmbito de encontros com agentes tomava-se o cuidado de que, para minimizar o risco de serem descobertos, não fossem realizados mais de dois encontros por mês; somente em casos excepcionais era permitido que os oficiais realizassem uma quantidade maior de encontros. O simples fato destes encontros terem ocorrido, tampouco significam algo sério ou negativo, apesar de que indicam a existência de uma relação ou amizade fora do comum de “Gosha” com os soviéticos. Isso – segundo afirmam os seus defensores  – poderia ser o resultado de suas convicções esquerdistas (mas não comunistas). Isso é possível, assim como é possível também que em sua inocência ele não percebesse que havia se tornado informante de um diplomata ou de diplomatas soviéticos, que  provavelmente eram oficiais da KGB. Gostaríamos de lembrar, que mesmo que a grande maioria dos encontros ocorreram na capital de Portugal, o escritor e jornalista “Gosha” era cidadão brasileiro, ou seja, de um país que então era claramente anticomunista, governado por uma ditadura militar, fortemente de direita. Sendo assim, deveria ele estar consciente de que estes encontros poderiam ser vistos pelas autoridades brasileiras como, no mínimo, inapropriados e, talvez fosse melhor tomar cuidado para que as autoridades brasileiras não tomassem conhecimento sobre os mesmos. Outra questão é se ele foi um informante consciente ou inconsciente. Poderíamos escrever mais a respeito se soubéssemos se ele recebeu ou não remuneração financeira ou presentes, lembranças e favores de seu amigo soviético. É sabido que o recebimento de  qualquer tipo de prêmio ou favor, era visto por (todos) os serviços de inteligência como circunstâncias comprometedoras para o figurante que poderia fornecer argumento para um recrutamento. A fonte portuguesa não cita nenhuma informação sobre isso.
Graças às informações de Rodrigo, filho de Josué Guimarães, sabemos que ele entrou em contato com o político brasileiro Brizola na Argentina. Este, como líder informal de um grupo de oposição no exílio e como um político que continuava a ser importante, sem dúvidas, foi um objeto de interesse por parte da KGB. Isso significa que justamente este contato podia ser muito importante e interessante para um oficial condutor da KGB. Este poderia ser um argumento que apontaria para uma colaboração ou, pelo menos, um interesse maior da KGB pela pessoa do escritor brasileiro.
O perfil político do escritor é apresentado como argumento que exclui a possibilidade de sua colaboração com o serviço de inteligência soviético. Isso seria pura inocência, desinformação consciente ou, simplesmente ignorância. O fato de que ele não era comunista, poderia, aos olhos da KGB, somente aumentar o seu valor. Todo o comunista no mundo ocidental dos anos 70 sempre era mais suspeito de fazer algo ilegal, do que qualquer outra pessoa. Sendo assim, poderia encontrar-se sob observação da contraespionagem do país, que via aos comunistas como inimigos. Além disso, as circunstâncias em que alguém não fazia parte do partido comunista poderiam ser extremamente atraentes para a KGB. Pois há mais esperteza em reunir informações, não onde elas surgem à vontade (já que os comunistas forneciam informações voluntariamente), mas sim, lá onde haviam menos fontes. Ou seja, em outras palavras – os comunistas serviam menos para serem agentes de um serviço de inteligência. Além disso, os contatos de maior importância eram aqueles através dos quais  poderiam ser realizadas operações ativas, ou seja, ações que faziam parte da política de influência soviética em territórios estrangeiros. Pois os textos de um escritor considerado como não comunista (mesmo que seja de esquerda) possuem maior força de persuasão, em uma sociedade democrática, do que aqueles escritos por alguém que é associado com comunistas. Neste caso, a força de convicção é maior. E também mais perigosa, caso o escritor transmita em seus textos os pensamentos, as idéias e os pontos de vista que lhe foram ditados por alguém de Moscou. Não estamos direcionando estas observações (diretamente) para o escritor mencionado; estamos somente tentando demonstrar a metodologia de trabalho do serviço de inteligência comunista. Por exemplo: durante os anos 60 no Brasil, o serviço de inteligência tchecoslovaco foi responsável pela publicação de textos que defendiam a “revolução cubana”, escritos desde pontos de vista burgueses; nestes textos foi feito um esforço para evitar o uso de uma argumentação comunista ou progressista e, ao mesmo tempo, foram escritos premeditadamente e conscientemente de uma forma que seguia os princípios e padrões de uma argumentação democrática, melhorando assim o resultado. Ao mesmo tempo, eram textos inspirados pelo serviço de inteligência comunista que serviam ao seu próprio interesse.
Estas observações derrubam os argumentos dos defensores do escritor – simplesmente quanto mais a pessoa não “combinava” com a imagem de um agente perigoso, melhor era para ocultar o fato de colaboração com um serviço de inteligência estrangeiro. As pastas do serviço de inteligência de Praga estão repletas de casos onde um agente útil e de valor era alguém que não “combinava” com a imagem conhecida de um agente – pessoas pouco sérias, que abusavam do álcool, falavam demais e, mesmo assim, eram agentes úteis. Também temos casos como este. Não existem motivos para que os soviéticos não pudessem trabalhar com uma pessoa assim, que estivesse distante dos padrões de um bom agente desenhados pela literatura sensacionalista.

Caso alguém queira estudar a tese de que o escritor Josué Guimarães pudesse ser um colaborador da KGB soviética, deve estudar profundamente os seus textos; principalmente aqueles do ano de 1976 e anos próximos. Neles, será possível encontrar pistas da influência de estrangeira. Ali será possível encontrar os sinais de operações ativas da KGB, caso estas tenham sido realizadas. Também deveria ser estudada a sua rede de ligações em (e não somente) Lisboa – pois justamente esta rede poderia ser de valor operacional para Moscou, por causa da possibilidade do acesso à informação. Com quem ele se encontrava, a quem conhecia e a quem tinha acesso. O pesquisador também deve estar atento quanto as condições financeiras do escritor naquela época, se por acaso não houve alguma mudança importante. Os resultados de uma verificação como esta poderiam, no máximo, aumentar a possibilidade de que a tese da revista portuguesa “Expresso” esteja correta.

É fácil acusar alguém de relações com a KGB; principalmente quando esta pessoa já é falecida. Apesar de que neste caso, eu compreenda que o motivo seja importante (assim como foi esclarecido acima), tenho consciência de que não foram apresentadas provas e que a acusação foi feita somente em nível de uma tese, que não é fácil de ser defendida. Por outro lado, caso se queira defender o bom nome de uma pessoa alvo deste tipo de acusação, que seja de uma maneira que faça sentido, apresentando argumentos válidos, e não através de explicações que a deixe em uma situação pior!

Vladimír Petrilák

http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/livros/noticia/2016/07/josue-guimaraes-e-kgb-amigos-e-familiares-negam-envolvimento-de-escritor-com-agencia-sovietica-6548472.html

http://poncheverde.blogspot.com.br/2016/07/escritor-gaucho-josue-guimaraes-era-o.html